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Fonte: Época

No fim de agosto, 465 mil americanos precisaram devolver seus marca-passos sob o risco de terem o coração invadido por estranhos. Os aparelhos faziam parte de uma leva que vem conectada à internet. A ideia original é que o marca-passo envie dados por Wi-Fi para clínicas ou médicos que monitoram os pacientes. Os sistemas, no entanto, tinham brechas e precisavam ser atualizados. Poderiam ser acessados por indivíduos com habilidades computacionais elevadas, que poderiam alterar o funcionamento dos dispositivos, gerando risco de vida aos usuários. A US Food and Drug Administration, agência de fiscalização e regulamentação de alimentos e remédios nos Estados Unidos, pediu o recall dos produtos.

Não foi um caso isolado. Outros objetos até então inocentes passaram a oferecer riscos. No mês anterior, o FBI emitiu um alerta aos pais: cuidem da interação de seus filhos com os brinquedos conectados à internet. Reconhecedores de voz, GPS, microfones e câmeras coletam dados preciosos das crianças e podem ser usados para ferir sua segurança ou privacidade. Babás eletrônicas já foram invadidas. Um cassino americano foi alvo de uma intrusão digital por um canal inóspito: um aquário conectado à internet. Em 2015, 80 mil ucranianos ficaram no escuro por três horas. A suspeita: um ataque hacker à rede elétrica.

Nos anos 2000, a noção comum de segurança era um computador com antivírus atualizado. Hoje, é uma geladeira, uma cafeteira ou um coração 100% imunes a uma invasão digital. Aparelhos como relógios, TVs, hidrômetros, equipamentos médicos, veículos e embalagens ganharam chips capazes de se ligar à rede e a outros objetos para enviar e receber dados ou permitir algum tipo de controle remoto. Essa explosão de conectividade ganhou o nome de Internet das Coisas (IoT, na sigla em inglês). É alimentada pela inventividade da indústria e pelos desejos dos consumidores. Essa onda, que também está no conceito de Quarta Revolução Industrial (essa conectividade unida à robótica nas fábricas) tem o potencial de impulsionar negócios e melhorar a vida das pessoas. Também eleva a insegurança cibernética a outro patamar.

Nos exemplos de catástrofes futurísticas, quase sempre aparece o clichê de um carro autônomo (que dirige sem motorista) hackeado em pleno centro da cidade, cercado por pedestres indefesos. O risco existe, mas os perigos mais comuns são menos cenográficos. No ano passado, serviços como Spotify, de música on-line, e Netflix, de filmes pela internet, saíram do ar. Foram derrubados por um ataque cuja estratégia consiste em mobilizar várias máquinas para tentar acessar o serviço ao mesmo tempo – num volume muito superior à capacidade prevista. Os sistemas ficam congestionados, e o serviço sai do ar. São os chamados ataques de negação de serviço (DDoS, na sigla em inglês). Nesse caso, a Internet das Coisas foi uma aliada, pois o vírus invadiu câmeras de segurança ligadas à internet e as obrigou a tentar acessar os sites dessas marcas.

O potencial benigno da IoT também vem se confirmando. O agronegócio é um setor que adotou alguns princípios com pioneirismo. Em algumas fazendas de soja brasileiras, chips enterrados no solo enviam, em tempo real, dados sobre salinidade, umidade e nutrição para um programa que comanda as máquinas responsáveis pela irrigação ou aplicação de fertilizantes. Em muitos casos, informações de satélite ajudam a conduzir essas máquinas. Esse conjunto de técnicas, batizado de agricultura de precisão, permite uma produtividade mais elevada.

Há iniciativas inspiradoras em outras áreas da economia, tanto projetos-pilotos locais que nascem de laboratórios de campi universitários, como de companhias globais como a IBM. A transação ininterrupta de dados em uma rede que liga objetos, máquinas, cidadãos, empresas e governos é como um campo de petróleo recém-descoberto: pode gerar riqueza para a população ou ser corrompido para o interesse de poucos. Junto às duas possibilidades, também existe o risco de o petróleo vazar.

Um sistema de chips que capta todas as informações do solo de plantadores de soja em Mato Grosso não ameaça a privacidade de ninguém. O risco é outro quando se trata de chips ligados a um corpo humano que captam onde o invíduo caminha (por GPS), o que fala (pelo microfone do celular) ou até o que você vê (pela câmera). A moeda de troca da economia baseada em informação são seus dados pessoais. Não há novidade em dizer que nada é gratuito. Mesmo o Wi-Fi público, por exemplo, se o modelo for baseado em parceria com a iniciativa privada, pode se sustentar a partir da coleta de dados pessoais para a venda de publicidade direcionada, como pretende fazer a prefeitura de São Paulo. Como estruturar políticas públicas em uma sociedade que gera, segundo a IBM, 2,5 quintilhões de bytes de dados todos os dias? Numa perspectiva histórica: 90% dos dados no mundo foram gerados nos últimos dois anos. É muito petróleo.

OS FOCOS DO PLANO NACIONAL Políticas públicas poderão priorizar quatro ambientes (Foto: Ilustração: Espaço Ilusório)

Um levantamento da consultoria Gartner diz que, em fevereiro, havia 8,4 bilhões de objetos conectados no globo (de smart TVs a sistemas de iluminação inteligentes por sensores), 31% a mais que no ano passado. Em três anos, serão 20 bilhões de coisas ligadas à internet. Outro estudo, da McKinsey Global, estima que o impacto de IoT na economia global alcance de 4% a 11% do Produto Interno Bruto do planeta em 2025. Na corrida econômica por dados, o Brasil não quer ficar para trás. Há dez meses, um consórcio liderado pela consultoria McKinsey com o escritório de advocacia Pereira Neto Macedo e participação do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD) desenvolvem, com financiamento do BNDES, um estudo para subsidiar o Plano Nacional de Internet das Coisas. O plano, esperado para o fim do ano, deve guiar a adoção de políticas públicas até 2022. Na terça-feira, dia 3, durante o FutureCom, evento de tecnologia da informação, internet e telecomunicações, em São Paulo, o BNDES e o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) lançaram o relatório final. Chamou a atenção a projeção de injeção financeira ligada à IoT no país: de US$ de 50 a US$ 200 bilhões por ano em 2025.

O objetivo do plano é criar um bom ambiente de negócios para os investimentos. A aspiração geral está relacionada à implementação de IoT para elevar a qualidade de vida: mais eficiência na mobilidade urbana e na segurança pública e ampliação do acesso à saúde são alguns destaques. Mas o projeto encontrará obstáculos. Um dos principais desafios é aprovar a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, há quatro anos latente no Congresso. “É a fundação. Sem isso, não levantamos a casa”, diz Maximiliano Martinhão, secretário de Política e Informática do MCTIC e recém-­nomeado presidente da Telebras. Esse é um consenso entre empresas, governo e ativistas da privacidade.

O ponto sensível está em definições abertas, como a do consentimento que cada cidadão deve dar para a coleta e o uso de seus dados em diferentes finalidades. No ambiente de IoT, ele precisaria autorizar (ou não) a coleta e o tratamento de seus dados a cada mudança de política dos dispositivos eletrônicos. Por exemplo, quando o software da smart TV recebe uma atualização. Há uma corrente mais liberal e favorável a um fluxo contínuo de dados (em que o cidadão não precisa autorizar com tanta frequência, espelhada no direito americano) e  outra que confere mais autonomia ao usuário que às empresas (quando a necessidade de consentir é mais constante ou expressa, a exemplo do direito europeu). O debate sobre a privacidade na internet e os direitos dos cidadãos evoluíram nos últimos anos. A percepção pública de como serviços usam nossas informações de forma nem sempre transparente ajudou a criar uma consciência maior por parte dos usuários. Enquanto o Brasil busca definir as regras para a Internet das Coisas, a chegada de mais aparelhos conectados ao nosso dia a dia e novos casos de hackeamento só farão a discussão ficar mais urgente.

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